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Acréscimo sobre o tema da Autonomia Universitária

26 outubro, 2021

Dr.Carlos Frederico Gusman Pereira

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito da autonomia universitária teve um de seus pontos altos do julgamento na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 51-9, cujo acórdão é datado de 25/10/1989, pouco mais de um ano após a vigência da atual Constituição da República.

Esta decisão assume grande relevo ao se considerar que a autonomia universitária assume sede constitucional somente após 05/10/1988.

O Procurador Geral da República propôs a referida ação contra resolução do Conselho Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que dispunha sobre eleição de reitor e vice-reitor da entidade.

Embora a ação tenha sido julgada procedente, nela consta voto de um dos julgadores do STF que mais se distinguiu pela cultura jurídica e sensibilidade social, o Ministro Sepúlveda Pertence, que limitou a sua decisão à verificação da incompetência do Conselho Universitário para dispor, originariamente, sobre a matéria.

Para ser entendida esta conclusão, devem ser transcritos alguns trechos do voto.

A primeira questão enfrentada pelo Ministro Pertence foi a no sentido de a autonomia universitária ter passado a ostentar natureza de dispositivo constitucional, divergindo do relator da seguinte maneira:

“Não acompanharia, nesse passo, o raciocínio do eminente Relator, porque, na verdade, em matéria da autonomia, há uma diferença qualitativa quando, ao invés de ser assegurada por lei ordinária, ela passa a ser assegurada pela Constituição. Assegurada pela lei ordinária a autonomia, que de um conceito relativo, tem âmbito residual, a partir das restrições que a própria lei impõe. Assegurada na Constituição, ela ganha amplitude independente, uma amplitude própria, em que nenhuma lei pode, a pretexto de discipliná-la, cerceá-la de tal modo que a destrua.”

Esta observação acima transcrita é diretriz fundamental para se conferir a exata dimensão da autonomia universitária, qual seja, a de que nenhuma lei poderá cerceá-la.

Se a lei não pode fazê-lo, muito menos quaisquer regulamentos poderão disciplinar o agir administrativo da Universidade, aí incluídos decretos, instruções e orientações normativas, circulares, portarias e que tais.

Após acentuar a natureza autárquica das universidades federais, cita o eminente julgador o magistério do Professor Celso Antônio Bandeira de Mello:

Nota Celso Antônio que autonomia, quando referida a autarquia, é uma expressão infeliz. E não há dúvida. Até etimologicamente, autonomia seria o poder de dar-se leis a si mesmo. “Ser autônomo’ – diz o ilustre monografista – “é dispor da prerrogativa de criar direito, ainda que em esfera específica. Não há autonomia sem poder político”.

A partir daí, o magistrado trata de modo definitivo a questão:

Poder político, acrescento eu, que envolve necessária função normativa de primeiro grau (primeiro grau no sentido de função normativa que deriva diretamente da Constituição). E daí, aí, sim, poder-se falar claramente em autonomia dos Estados e dos municípios. Não, data vênia, no ponto em que se subordinam às leis federais, mas autonomia em sentido próprio, porque Poder Legislativo derivado diretamente da Constituição. No entanto, consagrou-se, na terminologia jurídica, a expressão “autonomia administrativa”, como sinônimo ou como qualificativo característico da autarquia, aludindo, a um tempo, a descentralização e á autoadministração, sem implicar, no entanto, função normativa de primeiro grau: é, portanto, forma de descentralização administrativa, de descentralização política.
Entendo, com todas as vênias, que pode a lei, em princípio, dar poder normativo às autarquias. O exemplo das autarquias corporativas, das ordens profissionais, é expressivo e jamais contestado.

E efetuou a seguinte ressalva:

“Será, no entanto, poder normativo de segundo grau, dependente da lei e a ela subordinada materialmente. Nunca derivado, direta e essencialmente, da norma constitucional de autonomia administrativa da universidade.”

Fica evidenciado o âmbito da autonomia universitária.

Somente não pode contrariar lei formal e material, possuindo plena competência para expedir regulamentos internos, sendo os oriundos da administração flagrante violação da prerrogativa em foco, por isto mesmo inadmissíveis.

No julgamento da ADPF nº 548/DF, realizado 15.05.2020, voto proferido pela relatora, ministra Cármen Lúcia, também trata a questão de forma precisa e objetiva:

A autonomia é o espaço de discricionariedade deixado constitucionalmente à atuação normativa infralegal de cada universidade para o excelente desempenho de suas funções constitucionais (grifo nosso). Reitere-se: universidades são espaços de liberdade e de libertação pessoal e política. Seu título indica a pluralidade e o respeito às diferenças, às divergências para se formarem consensos, legítimos apenas quando decorrentes de manifestações livres. Discordâncias são próprias das liberdades individuais. As pessoas divergem, não se tornam por isso inimigas. As pessoas criticam. Não se tornam por isso ingratas. Democracia não é unanimidade. Consenso não é imposição, é conformação livre a partir de diferenças respeitadas.

Mais uma vez constata-se que o Supremo Tribunal Federal reconhece às Universidades atuação normativa infralegal, o que deve repelir toda conduta da administração no sentido de vinculá-las a qualquer forma de regulamento extra universitário.

Desta forma, a jornada de trabalho dos servidores das Universidades Federais tem como único limite legal o artigo 19 da lei nº8112/90:

Art. 19. Os servidores cumprirão jornada de trabalho fixada em razão das atribuições pertinentes aos respectivos cargos, respeitada a duração máxima do trabalho semanal de quarenta horas e observados os limites mínimo e máximo de seis horas e oito horas diárias, respectivamente.
§ 1º O ocupante de cargo em comissão ou função de confiança submete-se a regime de integral dedicação ao serviço, observado o disposto no art. 120, podendo ser convocado sempre que houver interesse da Administração.
§ 2o O disposto neste artigo não se aplica a duração de trabalho estabelecida em leis especiais.

De igual forma deve ser referido trecho do voto do Ministro Dias Toffoli no julgamento da ADI nº 3792/RN, datado em 22/09/2016:

Com efeito, muito embora a autonomia universitária não se revista de caráter de independência (RMS nº 22.047/DF -AgR, ADI nº 1.599/UFMC), atributo de poderes da República, revela a impossibilidade de exercício de tutela ou indevida ingerência no âmago próprio de suas funções, assegurando à universidade a discricionariedade de dispor ou propor (legislativamente) sobre a sua estrutura e funcionamento.

As ingerências da Consultoria Geral da República sobre regulamento interno do Hospital das Clinicas acerca de plantões mistos, é o “exercício de tutela ou indevida ingerência”, condenado no trecho acima transcrito, e que, portanto, deverá ser repelido.
Recorde-se que o único parâmetro delimitador da autonomia universitária é a observância da lei, e jamais a submissão a decretos e demais atos normativos expedidos pela administração federal.

A construção da autonomia universitária pode e deve ser decorrência de um esforço conjunto de todos que nela agem, com envolvimento da sociedade, a fim de que jamais possam prevalecer as tutelas e ingerências indevidas, tudo isto na luta pela consolidação de um Estado Democrático de Direito.

Impõe-se a conclusão de que a CGU, ao interferir indevidamente no poder regulamentar próprio de Autarquia detentora de autonomia constitucionalmente qualificada, incorre em flagrante ilegalidade, razão pela qual não deverão e nem poderão ser acatadas as medidas por ela propostas, todas elas amparadas em instruções ou orientações normativas.

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