29 agosto, 2022
⠀⠀⠀⠀Conforme explicado em nosso vídeo informativo publicado em 2020, os precatórios e as RPVs são títulos de dívida da fazenda pública.
⠀⠀⠀⠀As diferenças entre RPV (requisição de pequeno valor) e Precatório residem no valor e prazo de pagamento. No âmbito federal, são expedidos via RPV os valores de até 60 salários mínimos, enquanto os valores acima de 60 salários mínimos dão origem ao precatório.
⠀⠀⠀⠀Uma vez expedida pelo juiz, o prazo de pagamento da RPV é em torno de 60 a 90 dias. Já o precatório deve ser incluído em orçamento federal (até 01 de Julho do ano corrente) para pagamento no ano seguinte. Precatórios migrados após 01 de julho do ano corrente somente serão quitados 2 anos depois.
Após a expedição do requisitório e feito o pagamento pelo ente público, o credor (no caso os servidores públicos) são intimados para levantarem/sacarem os valores. Porém, vez ou outra ocorrem dificuldades e demora no levantamento de tais valores. Tal situação decorre das mais diversas possibilidades: o servidor não ser localizado, servidores que faleceram no curso do processo, mudança de endereço sem atualização de cadastro, valores depositados porém bloqueados por alvará, alguma resistência do devedor quanto ao levantamento[2], entre outros.
⠀⠀⠀⠀Assim, em alguns casos os valores ficavam depositados em agência bancária aguardando o saque. Foi pensando nessa situação que veio à lume a lei nº 13.463/2017 que determinou o cancelamento de precatórios e RPVs federais que não fossem levantadas pelo credor no prazo de até dois anos. Assim, os valores que estavam depositados há mais de 2 anos passaram a retornar aos cofres públicos. Nesse sentido, confira-se o art. 2º, caput, §1º da Lei 13.463/2017:
Art. 2º Ficam cancelados os precatórios e as RPV federais expedidos e cujos valores não tenham sido levantados pelo credor e estejam depositados há mais de dois anos em instituição financeira oficial. […] § 1º O cancelamento de que trata o caput deste artigo será operacionalizado mensalmente pela instituição financeira oficial depositária, mediante a transferência dos valores depositados para a Conta Única do Tesouro Nacional.
⠀⠀⠀⠀Tal medida não afeta o direito do credor em receber o que lhe é devido, que poderá requerer ao juiz a expedição de novo requisitório, com os trâmites citados acima.
⠀⠀⠀⠀Ainda assim, a lei nº 13.463/2017 passou a sofrer questionamentos judiciais, tendo em vista que traz prejuízos à situação do credor, notadamente quanto a celeridade processual e maior demora pela necessidade de nova expedição.
⠀⠀⠀⠀Vale lembrar que os processos contra a Fazenda Pública (União, autarquias, etc) já são extremamente demorados, tendo em vista não só a sobrecarga do Judiciário, mas também as diversas prerrogativas que os entes públicos possuem (prazos em dobro, intimação pessoal, reexame necessário, etc.), fazendo do recebimento do direito uma verdadeira maratona processual.
⠀⠀⠀⠀Quanto a essa situação vale inclusive o destaque de Márcio de Barros: “quando ocorre demora no levantamento de precatórios constata-se não haver, na imensa maioria dos casos, nem desídia das partes, nem muito menos dos seus procuradores. Até mesmo porque os advogados usualmente somente são remunerados após o recebimento do valor da condenação pelos seus clientes.[3]”
⠀⠀⠀⠀A lei nº 13.463/2017 trouxe mais um instrumento de demora, que beneficiou o devedor, no caso, a Administração Pública e prejudicou os credores, advogados e o próprio Poder Judiciário, que acaba se tornando mais moroso.
⠀⠀⠀⠀Assim, vale destaque o ajuizamento da ADI 5755 pelo PDT em que questionou-se a constitucionalidade do art. 2º da Lei 13.463/2017, por violação à separação dos poderes, a inafastabilidade de jurisdição e o desrespeito à coisa julgada. Além disso, menciona a inconstitucionalidade formal, pois, de acordo com o art. 100 da Constituição, tal matéria não poderia ser disciplinada por lei federal (reserva de constitucionalidade). De acordo com o PDT, referida lei seria mais um instrumento para “aplicar mais um calote nos jurisdicionados”.
⠀⠀⠀⠀O proponente bem ilustra a quebra de isonomia da situação criada pela Lei 13.463/2017 ao ilustrar que “a União deposita o valor, a mesma União (por suas instituições financeiras) cancela o precatório e esse mesmo numerário volta aos cofres da Fazenda Pública Federal…um “modo canhestro do Estado se pagar[4]”.
⠀⠀⠀⠀Concordamos com tal raciocínio, merecendo ainda alguns comentários adicionais. A regra de retornar ao Tesouro Público os valores depositados há mais de dois anos configura verdadeiro confisco de bens[5], na medida em que, por critério temporal absolutamente aleatório, retira o direito do credor em receber o que lhe é devido. Valores estes que são induvidosos, tendo em vista que decorrem de processos judiciais já alcançados pela coisa julgada.
⠀⠀⠀⠀Assim, tal sanha arrecadatória assemelha-se ao famoso ditado de “dar-se com uma mão para retirar com a outra”. A Fazenda Pública, condenada em ação judicial a pagar determinados valores, já vale-se do regime especial das RPVs e dos Precatórios (até porque, ao contrário dos particulares, seus bens são impenhoráveis), e quando tais requisitórios tramitam e são depositados, podem então ser desconstituídos tão somente em virtude do lapso temporal de 2 anos, sem apreciação judicial, sem verificação de motivos ou se de fato houve eventual inércia.
⠀⠀⠀⠀Tal situação beira ao absurdo na medida em que, muitas das vezes, a falta de levantamento dos valores depositados decorre de obstáculos impostos pela própria Administração, a exemplo dos requisitórios bloqueados por alvará em virtude de algum incidente processual levantado pelo próprio ente público.
⠀⠀⠀⠀Além disso, quando os valores são devolvidos ao erário e então é solicitada a expedição de novo requisitório, a Fazenda Pública tem defendido que o valor que havia sido depositado deve tão somente sofrer atualização monetária, sem incidência de juros de mora. Trata-se de mais uma injustiça praticada, partindo da falsa premissa de que, sempre que houver demora no levantamento de RPV ou Precatório, tal atraso deverá ser de responsabilidade do credor e que o devedor não incorre em mora, raciocínio que passa longe de ser verídico.
⠀⠀⠀⠀Trata-se de uma contradição em termos: se houve pagamento pelo devedor cessando a mora, não poderia haver devolução de valores aos cofres públicos. Por outro lado, se ainda não houve o pagamento, devem incidir juros de mora sobre os valores ainda não quitados, decorrência natural do art. 407 do Código Civil, in verbis:
Art. 407. Ainda que se não alegue prejuízo, é obrigado o devedor aos juros da mora que se contarão assim às dívidas em dinheiro, como às prestações de outra natureza, uma vez que lhes esteja fixado o valor pecuniário por sentença judicial, arbitramento, ou acordo entre as partes.
⠀⠀⠀⠀Assim, a determinação de devolução valores ao erário após o transcurso de 2 anos acaba se traduzindo em mais um benefício injustificado para os cofres públicos, em mais uma artimanha para protelar o pagamento de suas dívidas e criar óbice àqueles que, não raro, esperam por décadas para receberem os valores que lhes são devidos.
⠀⠀⠀⠀Nessa toada, a ADI 5755 pleiteou a declaração de inconstitucionalidade da situação criada pela Lei 13.463/2017 que determinou a devolução aos cofres públicos dos precatórios e RPVs depositados há mais de 2 anos nas instituições bancárias.
⠀⠀⠀⠀A Procuradora Geral da República Raquel Dodge emitiu parecer pela procedência parcial da ADI. A PGR bem observou que a administração dos recursos destinados ao pagamento dos precatórios e das RPVs cabe ao Judiciário, e não ao Poder Executivo como quer fazer crer a Lei 13.463/2017. Acrescentou também que a definição de prazo para o levantamento de precatório, sob pena de seu cancelamento, configura restrição ao exercício do direito do precatório que não encontra previsão na ordem constitucional, em afronta ao art. 100 da Constituição.
⠀⠀⠀⠀Nessa linha de raciocínio, a Ministra Rosa Weber proferiu voto pera procedência da ADI e reconhecimento de inconstitucionalidade material quanto a determinação de devolução aos cofres públicos dos valores depositados há mais de 2 anos.
⠀⠀⠀⠀A Ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) observou que “não cabia ao legislador estabelecer uma forma de cancelamento automático realizado diretamente pela instituição financeira sem a anterior oitiva da parte interessada.” Corroborou-se também a violação à separação dos poderes, na medida em que transfere à instituição financeira a atribuição do Judiciário em gerir os valores decorrentes dos processos judiciais. A Ministra também destacou que soa arbitrário, e em violação a segurança jurídica, o cancelamento dos requisitórios após o transcurso de 2 anos.
⠀⠀⠀⠀Raciocínio que se confirma na medida em que, muitas das vezes, a demora no pagamento não decorre da inércia do credor ou de seu advogado, mas sim de empecilhos criados pela própria Fazenda Pública ou por fatores externos, tais como o falecimento do credor originário.
⠀⠀⠀⠀Desta feita, a Ministra Rosa Weber votou pela procedência do pedido, para declarar a inconstitucionalidade material do art. 2º, caput e § 1º, da Lei nº 13.463/2017.
⠀⠀⠀⠀O julgamento da ADI 5755 foi iniciado pela Ministra Rosa Weber em 12/02/2021. Após o referido voto o Ministro Roberto Barroso pediu vista dos autos e o julgamento foi suspenso.
Assim, embora o julgamento da ADI esteja suspenso, há uma grande expectativa para que a determinação de devolução ao erário dos valores depositados há mais de 2 anos seja declarada inconstitucional. Mais que isso, é preciso reconhecer que tal norma criou um benefício injustificado e desproporcional para a Fazenda Pública enquanto devedora de tais valores, na mesma medida em que, em diversas oportunidades a demora no levantamento não pode ser imputada aos credores ou a seus advogados, tendo em vista que decorria de obstáculos impostos pela própria Fazenda Pública.
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[1] Advogado. Sócio do Escritório Aroeira Braga, Gusman Pereira, Carreira Alvim e Advogados Associados. Especialista em Direito Público. Mestre em Direito Tributário pela UFMG.
[2] “Por ocasião do levantamento de precatórios, tem sido comum a União arguir desde questões de legitimidade, passando pelo questionamento de documentos que acompanhavam a petição inicial e nunca foram impugnados e chegando à impugnação de critérios utilizados no cálculo dos respectivos valores.” ADI 5755, petição inicial, pág. 12.
[3] https://www.conjur.com.br/2021-fev-25/marcio-barros-tunga-precatorios-adi-5755#:~:text=A%20nova%20tunga%20nos%20precat%C3%B3rios%20e%20a%20ADI%205755,-25%20de%20fevereiro&text=Por%20seu%20turno%2C%20o%20par%C3%A1grafo,Conta%20%C3%9Anica%20do%20Tesouro%20Nacional.
[4] ADI 5755, Petição Inicial, pág. 10.
[5] Nessa linha de raciocínio, confira-se o julgamento da ADI 5353 em que o STF julgou inconstitucional Lei Estadual de Minas Gerais que autorizava o Poder Executivo a utilizar dos valores decorrentes de depósitos judiciais. Na oportunidade, o Supremo consignou que “leis estaduais que autorizem e regulem a transferência de recursos financeiros depositados em juízo para o Poder Executivo incorrem em inconstitucionalidade formal.”
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